quinta-feira, 24 de outubro de 2019

Quem sabe sou mais Álvaro de Campos?

[17:29; 21:09... infinito]

Nessa tarde cinza e densa, encontro um respiro na poesia com a qual me deparei na estante do corredor da casa da minha tia. Digo que encontro um respiro, não porque eu estivesse sufocada e precisando respirar, mas porque qualquer encontro com a poesia convida aquele que passa a respirar um ar fresco e novo de palavras que fluem como a água do rio.
Pois bem, me deleito nesse momento com esse maravilhoso e enorme volume de Álvaro de Campos. Por um instante me detenho.
Me detenho e penso que talvez, abrindo-o, estarei sendo entregue aos feitiços desse heterônimo, o que é perigoso pois ele pode de pronto me seduzir com seu lirismo angustiadamente irônico e me amarrar a ele. E talvez eu nunca mais consiga me desprender de suas garras friamente poéticas, e confesso que gosto que tais garras me agarrem com todo seu vigor poético e não me deixem escapar. 
Me detenho porque meu coração é Alberto Caeiro. 
Respiro Alberto Caeiro.  
Tento viver na prática a filosofia de Alberto Caeiro, seu estilo de vida simples e direto, abstratamente concreto.
No passado, emprestei doses de Alberto Caeiro para servir como antídoto para muitas de minhas crises e divagações mentais aflitivas. Hoje, engulo de uma vez a dose inteira, me banho com fartura nas suas águas e bebo de sua fonte.
No futuro, quem sabe que dose tomarei, e em qual quantidade? Não cabe a mim pensar nisso agora. O amanhã não é certo, ele inexiste, assim como o sopro do segundo que acaba de se esvair e virar passado. O presente é uma centelha de vida, e ele dura o suficiente para percebermos que ele já se foi.

Pois bem, como eu dizia...
Me detenho porque meu coração é Alberto Caeiro. 
Não posso nem ousar espiar pelas páginas de Álvaro de Campos, não sei o que me aguarda lá dentro, quem sabe serei sugada, devorada por seu modo irreverente e irônico de ser? Quem sabe seu ceticismo me seduza a ponto de eu não saber mais o que é crer em qualquer coisa? Eu que creio em tanto... Eu que creio mesmo sabendo que minha crença talvez não passa de uma ilusão e consolo, de uma tentativa infantil de imbuir de sentido o que não tem, de respingar com cor essa tela cinza de mundo...



O sol se pôs, as estrelas tentam brilhar por debaixo desse véu urbano poluído. Agora o relógio já marca 21:10. 
E eu sigo aqui, nesse meu oásis virtual, única superfície de contato que tenho com você, Yossi, até domingo raiar...
Veja bem, ´´superfície´´, termo propositalmente empregado para traduzir a bidimensionalidade escrota de tal contato.

Como eu dizia...

Por um instante me detive.
Mas logo no instante seguinte, de súbito abri o livro e mergulhei nele como quem mergulha num mar densamente azul e cheio de corais dos mais variados tons e texturas...
Primeiro, como me é de costume, folheei algumas páginas com minhas mãos, que escorregavam cheias de prazer pelas linhas, sentindo a energia que emanava daquelas várias palavras. 
Logo voltei a fechar o livro como quem fecha uma abertura escondida de um túnel secreto por guardar mil tesouros. 
Fechei o livro para novamente olhar, dessa vez de forma mais atenta, sua capa, contracapa, absorver essa interface entre o livro e o mundo, afinal o mundo só chega a ver e tocar a capa e a contracapa. Poucos são os que tem a sorte ou a coragem de abrir um livro e se deixar levar pelo que ele propuser...
Segurei o livro junto do meu peito como quem segura um bebê risonho e misterioso, abracei-o como se ele tivesse vida e pudesse me abraçar de volta.  E de fato vida tinha, pois me retornou o abraço.
Tornei a abrir o livro, dessa vez com mais fome e vontade, pronta pra me entregar. 
E ao me entregar, ele me envolveu com suas linhas atrevidas, pessimistas, intimistas, futuristas, melancólicas, paradoxais... 


Meu amor!
Sinto um pouco de você nessa poesia... Há muitos traços teus que rimam com a poesia do Álvaro de Campos. Isso é especial. Você acha especial? 

Eu poderia escrever muito mais aqui, porque os sentimentos e pensamentos são vários, e que delícia é poder compartilhar com você. Mas vou te poupar de ler uma bíblia e vou me limitar por aqui, te deixando com um excerto de um dos poemas que mais me tocam e pelo qual o Álvaro de Campos é mais famoso (não que essa segunda informação importe). 
Espero que você goste!
Depois me conte :)

TABACARIA


Não sou nada.
Nunca serei nada.
Não posso querer ser nada.
À parte isso, tenho em mim todos os sonhos do mundo.
Janelas do meu quarto,
Do meu quarto de um dos milhões do mundo que ninguém sabe quem é
(E se soubessem quem é, o que saberiam?),
Dais para o mistério de uma rua cruzada constantemente por gente,
Para uma rua inacessível a todos os pensamentos,
Real, impossivelmente real, certa, desconhecidamente certa,
Com o mistério das coisas por baixo das pedras e dos seres,
Com a morte a pôr humidade nas paredes e cabelos brancos nos homens,
Com o Destino a conduzir a carroça de tudo pela estrada de nada.




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