domingo, 29 de setembro de 2019

Catarse

Hoje lembrei de uma noite muito estranha pra mim.
Não sei se já te contei disso antes.

Acordei com o espírito melancólico,
aquele que vai atrás de músicas tocantes,
só para chorar,
"só".

Tem algumas tristezas que guardo e elas ficam mais felizes quando estou com você,
minhas lembranças mudam de cor.
Hoje não foi diferente.
Minha lembrança consiste numa fria noite de novembro, dia 9 para ser mais preciso,
Era sábado anoite em Jerusalém.
Eu tinha passado shabat lendo dostoievski,
um menino passando sozinho uma noite de natal,
sua mãe morreu,
seu pai?
Estava frio,
ele só queria um casaco e uma sopa,
tinha tuberculose e tossia
todos o recebiam a vassouradas,
sua única solução era errar pelas ruas.
A cidade era a sua amiga.
E assim foi que jesus passou sua noite de natal.

Outro conto era sobre uma prostituta que não conseguia voltar para casa.
Era frio.
Os homens que lhe estendiam a mão para ajuda-la na verdade queriam estender outra coisa.
Ela errava pelas ruas e os olhares perseguiam ela,
Ela só queria estar sozinha e sofrer sozinha.
Foi para uma cidade que ninguém a conhecia e andava por lá.
Errava e sofria de frio.
O dia no conto era 9 de novembro,
Olha lari, to lendo um conto que está acontecendo dia 9 de novembro!
Ela não prestou atenção.

No fundo eu queria viver o que aquela mulher vivia,
Eu queria errar pelas ruas e sofrer,
Eu queria ir pra Rússia e ficar com frio e me perder na névoa branca.

Shabat acabou.

Estamos três sentados na mesa, eu fazendo minha primeiras lições de cácluco numérico
(Aquelas das bactérias que fiz o projeto final em abril!
Eu já tava com você.
Ai que alegria)
Eu tava na cabeceira da mesa,
A lari e a selly na outra ponta da mesa estudando outras coisas.
Vou percorrendo pelas músicas e chego no shalom chanoch.
Começo a ouvir הולך נגד הרוח,
algo me toca daquela vez.
ואתה מרגיש שאתה האיש הכי בודד בעולם.
מוצא את עצמך הולך נגד הרוח.
Aquela letra, aquele piano...
O homem andando pelas ruas, as luzes fracas no horizonte...

Começo a chorar.
Aquilo não foi um choro normal.
As lágrimas escorregavam com uma facilidade que me deixou assustado.
Eu não tava entendendo.
Mas tava bom.
Eu queria mais.
Fui atrás de mais músicas, גיטרה וכינור, אדם בתוך עצמו...
Eu chorava sem parar
e eu gostava,
Queria mais.
Eu queria errar,
eu queria sentir frio,
queria o fundo do poço,
Era bom e eu sabia.
Só queria a oportunidade para ter mais daquilo.

Do outro lado da mesa tudo continuava igual.
Eu estava em um abismo, intransponível para o outro lado.

Segunda-feira terminamos o namoro.

Eu lembrei dessa história pela primeira vez meses depois,
achei-a curiosa.
Talvez foi um leve momento profético,
de um final que já estava no ar?
Um choro feliz, um prenúncio dos meus próximos meses?
Talvez.

Mas quanto mais eu fico com você, Raquel,
Mas eu gosto dessa história.

Percebo que entre nós não haverão abismos intransponíveis.
Haverão abismos,
e que abismos!

Mas serão abismos de mãos dadas.



10 comentários:

  1. Este comentário foi removido pelo autor.

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    1. link da música נגד הרוח:
      https://www.youtube.com/watch?v=oenTa9BluyA

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  2. Forte! Obrigada por compartilhar comigo(seus sentimentos e pensamentos)
    :)

    Essa música נגד הרוח eu já tinha ouvido, me apareceu no spotify quando eu tava ouvindo a אדם בתוך עצמו.
    Muito linda... E bem triste eu senti.
    A frase que você pois mexeu muito comigo quando ouvi pela primeira vez...
    אתה מרגיש שאתה האיש הכי בודד בעולם.
    מוצא את עצמך הולך נגד הרוח.

    E imagino que no seu texto você ressaltou essa frase para ilustrar como você se sentia naquele dia, 9 de novembro caso a cena da mesa seja o mesmo dia do shabat que você escreveu sobre.. E pra ser sincera, me deixa triste saber que você se sentia assim naquele momento. Te imaginar triste, chorando, se sentindo o homem mais solitário do mundo, me aperta o coração e me faz querer te abraçar e nunca mais soltar. Sei que de certa forma, e até pelo título do texto, tais momentos de choro e libertação emocional são até prazerosos e terapêuticos. A melhor palavra para descrevê-los é de fato catárticos. Então por esse motivo fico menos mal de você ter se sentido assim naquela noite. E espero que hoje em dia você não sinta mais essa solidão, esse peso. Porque você não merece isso! De verdade, é isso que me pega. Você, tão doce, sensível e carinhoso, não merece sentir esses sentimentos pesados e escuros. Mas em geral, são as pessoas mais doces que mais conhecem o amargo da vida...
    Enfim..
    Espero que minha chegada na sua vida tenha te trazido também leveza, luz e serenidade. Porque é isso que você emana pra mim. E é isso que eu desejo pra você, mesmo se eu nem te conhecesse.

    A frase que também me pega dessa música é אני סומך על הגשם שימשיך לרדת
    Várias vezes quando estou triste e minha existência se torna pesada e dói ser, me alivia o fato de que os ônibus ainda passam, a chuva ainda cai, o mundo ainda segue como se nada tivesse acontecido, como se nenhuma menina estivesse mirando o mundo com seus olhos baixos e murchos, sentindo que o peso da existência nos seus ombros é insuportável e ela quer descer (do mundo). É bom saber que o mundo não liga pros meus dramas, pras minhas noites escuras, e segue funcionando tudo como de costume. Estranhamente, assim me sinto menos culpada, de certa forma.
    Por isso me é especialmente tranquilizante quando estou tendo momentos de solidão interna sentada em um ônibus que atravessa a chuva que insiste em cair. Me é tranquilizador por três motivos principais, pelo menos são esses os que estão acessíveis à minha consciência.
    1. Fico feliz de ver que mesmo que estou sem força para ser e existir e ser produtiva no mundo, estou sendo produtiva de certa forma pois o ônibus me transporta, ou seja, estou me movimentando pelo espaço. Nesse momento, o ônibus se torna um presente do mundo para mim, pois me convida a sentar e me transporta por aí, quando eu já não tenho forças de me transportar com minhas próprias pernas. Sento, e isso basta. Estou sendo levada ao meu destino.
    2. Me é catártico ver a chuva caindo pela janela. A chuva segue caindo, independente do quão triste estou, do quão paralisada estou. A chuva, que de certa forma representa a natureza, não paralisa. E isso me faz sentir à vontade para me paralisar,
    pois a chuva, ao chover, compensa a minha falta de vontade de ser. Pois ela está sendo naquele momento.
    3. Ademais, a chuva é catártica também porque emula as minhas lágrimas, que muitas vezes estão solidificadas dentro de mim e não encontram maneira de escoar externamente. Vendo a chuva, vejo minhas lágrimas, aquelas que escorrem e aquelas que queriam escorrer mas estão acumulando dentro de mim.


    Isso também me lembra desse trecho
    הגשם שוב נהיה כבד,
    ולא רואים ממטר.

    Da música סע לאט... Que foi você quem me mostrou.
    Adoro músicas que trazem como referência a água.

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  3. ´´Acordei com o espírito melancólico´´ faz parte de você relatando a sua lembrança, mas hoje no telefone você disse que hoje também se sentiu assim.. Bom, deve ser por isso que te ocorreu justo essa lembrança haha.
    Me é curioso isso, porque em geral eu me sinto melancólica nas noites, quando entardece, quando estou indo dormir.. Raramente sinto isso ao acordar..

    AAAAH CALMA! Agora reli no texto e entendi que essa frase ´´Acordei com o espírito melancólico´´ ainda não faz parte da sua lembrança, ainda é de fato sobre o hoje. Entendi! hahaha então não era coincidência que justo hoje você acordou assim também.


    Adorei que você ressaltou o
    "só".

    ´´Tem algumas tristezas que guardo e elas ficam mais felizes quando estou com você,
    minhas lembranças mudam de cor.´´
    Ai meu amor... Isso é muito forte! E me identifico muito, sinto assim também com você. Não querendo trazer academicismo pro nosso refúgio de blog, mas uns meses atrás li artigos que se tratam disso. Sobre nossas memórias emocionais autobiográficas e como, ao recontar, modificamos o modo como vemos aquele evento na nossa vida, nem o modo como vemos, mas sim a emoção que associamos àquele evento muda de tom, quando resgatado aquele evento traz outros sentimentos, diferentes dos sentidos na época. Não sei se estou me expressando de forma clara haha
    Vou tentar achar e posto aqui. É bem interessante e real! E lindo.

    Mas sim.
    O ponto é que me identifico muito com isso que você disse. Várias vezes quando conto coisas pra você, elas já não são tão dolorosas, ou tão escuras... A leveza e paz que você me transmite contagia até minhas memórias. E é aí que você sabe que você tá com a pessoa certa ao seu lado. Quando recontar o seu passado pra ela te faz encarar ou enxergar ou vivenciar de forma diferente seu passado. Mesmo que aquela pessoa não estava com você naquele passado, a presença dela no seu presente é tão significativa que de certa forma, tal pessoa entra no seu passado e transforma suas memórias em coisas mais leves.

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  4. ´´sua única solução era errar pelas ruas.
    A cidade era a sua amiga.´´

    Isso me lembrou de você em nova york, quando ´´errou´´ (adorei esse termo!) pelas ruas e foi parar num Mc Donalds se não me falha a memória... Mas pra você acho que foi uma coisa gostosa né, não uma solução pra algo ruim.

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  5. ´´Ela errava pelas ruas e os olhares perseguiam ela,
    Ela só queria estar sozinha e sofrer sozinha.´´
    Forte..
    Já me senti assim. Querer estar sozinha para poder sofrer à vontade, sem olhares curiosos ou julgadores. Julga dores. Cai fora do campo visual e me deixa sentir minha dor sozinha!!! Seus babacas.

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  6. ´´Olha lari, to lendo um conto que está acontecendo dia 9 de novembro!
    Ela não prestou atenção.´´
    Ai..

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  7. ´´Shabat acabou´´

    Então só pra eu entender melhor, vocês passaram aquele shabat juntos?

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  8. ´´Do outro lado da mesa tudo continuava igual.
    Eu estava em um abismo, intransponível para o outro lado.´´

    uau... forte.
    Já me senti assim.. ninguém tem ideia do que se passa dentro da sua cabeça, ou da sua dor, o que você tá sentindo.. não sei se era exatamente isso que você quis dizer ao usar o termo abismo intransponível.
    Isso me lembra desse poema, que a Iraci nos mostrou vários anos atrás, mas que me marcou pela verso ´´E esse alheamento do que na vida é porosidade e comunicação´´.. Esse verso é pura antítese, e por isso me foi de grande alívio lê-lo, pois colocou em palavras coisas que eu sentia em meu coração e não conseguia formular, verbalizar, externalizar. Por um lado, há a comunicação e a porosidade. Por outro, o alheamento, o se sentir distante, vazio, longe. A intransponibilidade. Abismo. E não há nenhuma ponte capaz de driblar tão abismo e conectar um coração ao outro... Como síntese, percebemos que toda essa comunicação e porosidade (ter poros, estar aberto e sensível ao outro e à existência do outro) não passa de uma mera ilusão. A verdade é que ninguém se importa com o que o outro conta, com o que o outro sente. Há abismos intransponíveis, falamos e falamos mas ninguém verdadeiramente nos escuta. E nós, também, não escutamos ao outro. Perdeu-se a porosidade entre dois corações.

    Confidência do Itabirano (do livro Sentimento do Mundo, de Carlos Drummond de Andrade)
    Alguns anos vivi em Itabira.
    Principalmente nasci em Itabira.
    Por isso sou triste, orgulhoso: de ferro.
    Noventa por cento de ferro nas calçadas.
    Oitenta por cento de ferro nas almas.
    E esse alheamento do que na vida é porosidade e comunicação.

    A vontade de amar, que me paralisa o trabalho,
    vem de Itabira, de suas noites brancas, sem mulheres e sem horizontes.

    E o hábito de sofrer, que tanto me diverte,
    é doce herança itabirana.

    De Itabira trouxe prendas diversas que ora te ofereço:
    esta pedra de ferro, futuro aço do Brasil,
    este São Benedito do velho santeiro Alfredo Duval;
    este couro de anta, estendido no sofá da sala de visitas;
    este orgulho, esta cabeça baixa...

    Tive ouro, tive gado, tive fazendas.
    Hoje sou funcionário público.
    Itabira é apenas uma fotografia na parede.

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  9. Percebo que entre nós não haverão abismos intransponíveis.
    Haverão abismos,
    e que abismos!

    Mas serão abismos de mãos dadas.

    TE AMO

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