quarta-feira, 25 de setembro de 2019

Passagem da Noite


[01:01]
[Sentada no sofá preto, coberta por edredom infinitamente azul, que me traz paz e serenidade]
[A única ainda desperta nessa fria noite de sei lá que estação que faz lá fora... São Paulo se rebelou e já não obedece às estações]

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Raquel, menina cujas estações se alternam no ritmo de seus sentimentos.
Em um instante vibrante floresce por campos de girassóis mentais,
E de repente carente murcha como quem não recebe água há tempos.
Ao fim transforma tudo em poesia, para que tais flutuações não lhe sejam fatais.


Passagem da Noite (do querido Carlos Drummond de Andrade em ''A Rosa do Povo'')

É noite. Sinto que é noite
não porque a sombra descesse
(bem me importa a face negra)
mas porque dentro de mim,
no fundo de mim, o grito
se calou, fez-se desânimo.
Sinto que nós somos noite,
que palpitamos no escuro
e em noite nos dissolvemos.
Sinto que é noite no vento,
noite nas águas, na pedra.
E que adianta uma lâmpada?
E que adianta uma voz?
É noite no meu amigo.
É noite no submarino.
É noite na roça grande.
É noite, não é morte, é noite
de sono espesso e sem praia.
Não é dor, nem paz, é noite,
é perfeitamente a noite.





Mas salve, olhar de alegria!
E salve, dia que surge!
Os corpos saltam do sono,
o mundo se recompõe.
Que gozo na bicicleta!
Existir: seja como for.
A fraterna entrega do pão.
Amar: mesmo nas canções.
De novo andar: as distâncias
as cores, posse das ruas.
Tudo que à noite perdemos
se nos confia outra vez.
Obrigado, coisas fiéis!
Saber que ainda há florestas,
sinos, palavras; que a terra
prossegue seu giro, e o tempo
não murchou; não nos diluímos.
Chupar o gosto do dia!
Clara manhã, obrigado,
o essencial é viver! 



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Hoje foi mais um daqueles dias em que minha flutuação emocional se fez presente. Acordei animada, de pronto pulei da cama feliz com o que estava por vir. Estava há dias empolgada para hoje, em que acompanharia minha mãe na aula que ela frequenta semanalmente na Faculdade de Psicologia na USP.
Minha manhã foi sensacional. 3 horas de orgasmo intelectual.
Minha tarde foi inspiradora. Conversas sobre os ciclos do mundo e da mulher e sobre Deus com a Daphna.
Exausta, as 16:35 embarco na famigerada power nap.
Quando desperto, o mundo estava outro.
As coisas já não estavam em seu lugar.
Acordo pra um mundo cinza, frio e vazio.
Me sinto cinza, fria e vazia.
Dentro de mim, no fundo de mim, o grito se calou, fez-se desânimo.
É noite, não aquela que faz as estrelas surgirem no céu, mas aquela que escurece o interior do meu ser.
Um misto de imobilidade com angústia me prende na cama, não sinto vontade de levantar e prosseguir com meu dia. Melhor era continuar dormindo. Pra que fui acordar?
As coisas de repente se tornam pesadas, a gravidade me puxa com força em direção à terra da Terra.
E nesse estado de completa paralisia, a visão emocional fica mais turva e carregada, tudo adquire uma extra dose de dor.
A saudade de você, que já era grande, triplica.
A solidão que normalmente sinto em doses suportáveis e até prazerosas, se intensifica e me faz sentir esquecida e abandonada num mundo opressor.
Angústias esporádicas sobre o mundo de repente pesam mais do que posso aguentar.
Quero chorar.
Lágrimas não saem, estão estancadas.
Depois de refletir em vão sobre coisas escuras desse mundo, pois meu pensamento estava confuso e distorcido, junto forças inexistentes e me levanto, na esperança de que escrever em meu diário me confortará.
Nem meu diário, fiel amigo que acompanha pacientemente e com olhar curioso a minha brusca mudança de estações, é capaz de me acalmar ou ser acolhedor de minhas emoções. 
As palavras que quero escrever insistem em ficar entaladas em minha garganta. 
A caneta não coopera, não flui pelas linhas vazias. Nada flui.
Me sinto grão de areia nesse mundo grande.
Ele é pesado demais para os meus ombros.
Sinto as lágrimas se acumulando no meu peito, logo sei que vão vazar.
Volto para minha cama, como uma comportada anfitriã a espera de suas convidadas.
A primeira nem bate na porta, já vem rolando bochecha abaixo como se a casa fosse dela.
E outra, e outra, e outra.
De repente, meu rosto está encharcado por um rio de sentimentos confusos e ilegíveis.
Deixo o rio fluir.
Sei que tal catarse é imprescindível à minha existência e auto-conhecimento.
Tento expressar o que sinto (quando nem eu o sei) para quem eu sei que me ama e que me quer bem. 
Porque?
Primeiro porque estou impossibilitada de seguir uma conversa normal e responder sem maiores indícios de qualquer mudança de estações, o que gera indagação e um sentimento de confusão por parte deles, e sinto que devo um esclarecimento a respeito do que se passa do lado de cá.
Segundo, porque quando verbalizada e externalizada, a dor muitas vezes se dissipa.
Terceiro, porque ao se sentir amordaçada assim, muitas vezes ajuda ser acolhida e amada.
Mas a mordaça realmente é cruel, não me permite falar. 
Minha boca e todas as minhas faculdades verbais, imobilizadas.
Permaneço então calada.  
Impossibilitada, por mim mesma, de pedir ajuda e expressar para quem passa lá fora, o que é que se passa aqui dentro. 
Sou obrigada a ficar a sós comigo mesma naquele momento de simultânea dor e dormência. 
Respeito a minha necessidade de espaço e silêncio.
Eu em contato íntimo com o eu. Sentimentos nus, despidos de qualquer polidez ou refinamento social.
Dou tempo ao tempo.
Um sentimento de compaixão e amor-próprio se disfarça de lágrima e se infiltra no meu rio.
E quando todas as lágrimas e sentimentos rolaram, pergunto a mim mesma com carinho: ''Acabou?''
''Acabei.''
O mundo se recompõe.
Me sinto mais leve após todo aquele peso acumulado ter sido externalizado.
Me levanto e a luz vem ao meu encontro.
O essencial é viver!

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Tal flutuação emocional pode assustar o olho nu, mas não causa surpresa em sua velha hospedeira, eu. 
De fato se trata de uma jornada desgastante, atravessar tantos estados emocionais e encontrar tantos extremos em um só dia. 
Mas estou acostumada, e até ouso dizer que cada vez que hospedo uma flutuação emocional, me traz uma sensação de familiaridade, pois me confirma que eu ainda sou eu, com todas as minhas cores e troca de estações.
Outro grande hóspede que sempre dá as caras é o humor e a capacidade de dialogar comigo mesma, e dou graças a Deus por me permitir hospedar hóspedes tão queridos. Me permitem encarar a minha existência humana com leveza, tornando-a cômica. Assim tudo se torna mais tolerável. 

E assim chega ao fim mais um dia sendo Raquel, menina cujas estações se alternam no ritmo de seus sentimentos.

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Em relação à escolha do poema acima, Passagem da Noite, para me fazer companhia nessa fria noite de não-estação e me ajudar a expressar aquilo que sinto mas não sei expressar, ela (a escolha) não é incidental. Tem muita história pessoal por trás desse poema. Mas isso fica para outro texto, para outra estação.











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